Sarah Lucas (b. 1962) is one of the most relevant artists of the first generation recognized as the Young British Artists, whose notoriety began to emerge in the transition from the 1980s to the 1990s. Over the past three and a half decades, her provocative use of materials and objects that challenge dominant narratives of sex, gender, and class – often employing visual and linguistic puns combined with unapologetic humor – has placed her under the art world's spotlight from the very beginning. By analyzing selected works by the British artist, iconic examples of her artistic practice, this study aims to understand how her praxis reflects a feminist, anti-patriarchal stance, and, equally, to what extent this stance – sometimes ambiguous, sometimes problematic – is shaped by another dimension continuously present in her work, regardless of the medium: humor and/or irony. Sarah Lucas, whose name is frequently associated with the “bad girl” label, has built a unique voice in contemporary art through the interweaving of these multiple dimensions.
A obra explode como um tiro de uma pistola de partida (humoristicamente fálica), anunciando a chegada de uma documentarista da vida sexual feminina diferente de qualquer outra na história da arte.
Philippa Snow (2023)
Ela era a mais rock ‘n’ roll dos YBA, uma escultora provocadora e uma consumidora de bebidas alcoólicas prodigiosa.
Lynn Barber (2020)
À guisa de introdução e talvez um pouco mais[1]
“Gosto que as coisas façam sentido para plebeus como eu” (Smith & Lucas, 2018). Foi com esta frase esclarecedora que, em 2018, Sarah Lucas terminou a sua conversa com a jornalista Roberta Smith, do New York Times, assinalando a abertura da sua primeira retrospetiva nos Estados Unidos. Tratava-se, aliás, da primeira mostra individual que havia realizado em instituições norte-americanas de referência, em mais de três décadas de prática artística. Aconteceu já depois de ter sido escolhida para representar o Reino Unido na Bienal de Veneza, de 2015, mas antecedeu, por meia dúzia de anos, a importante exposição antológica Happy Gas, que se instalou na Tate Britain, entre setembro de 2023 e janeiro de 2024. Foi o ápice, ou se quisermos o clímax (expressão mais consentânea com a temática que atravessa o corpus da sua obra, a sexualidade) da consagração caseira de uma artista que, inicialmente, teve mais facilidade em ser reconhecida no estrangeiro do que em Inglaterra (Robecchi & Bonami, 2007, p.11).
Lucas nasceu em Islington, nos subúrbios de Londres, em 1962, num momento em que o bairro, hoje paradigma da gentrificação tóxica que assola a capital britânica (Shaheen, 2013), era sobretudo uma zona habitacional da classe média: os seus pais eram isso mesmo, membros de uma classe trabalhadora pouco qualificada. Sarah cresceu livre, com os rapazes do bairro e seus comportamentos desbragados (Robecchi & Bonami, 2007, p. 9) até que, aos 16 anos, saiu de casa e foi viver com ocupas, envolvendo-se no movimento Squatters, (The Women’s Studio, n. d.). Tais circunstâncias terão sustentado a construção daquela que é sua persona no espaço público: sempre de jeans, muitas vezes esburacados, t-shirt monocromática, calçado de sola grossa e, a espaços, um austero blaser de corte clássico ou um blusão de cabedal. Não se mencionaria a indumentária se ela não fosse uma espécie de uniforme artístico[2] ou, simultaneamente, uma carapaça à prova de censura. Também ela contribui para que críticos e jornalistas, teçam considerações acerca de uma alegada aparência pouco cuidada, de pendor mais masculino do que feminino, com laivos de androginia. Chamam-lhe tomboy[3](Robecchi & Bonami, 2007, p.14; Stallabrass, 1999, p. 94; Snow, 2023). À expressão correspondente na língua portuguesa, preferirmos sinalizar que a imagem pública que Lucas desde sempre transmitiu é, não só um sinónimo da sua individualidade, no quadro de um pensamento livre de estereótipos, como um elemento ativo do seu processo criativo. Não por coincidência, é essa postura que artista tem vindo a disseminar, no limite, de forma ficcional, em dezenas de autorretratos. Numa reveladora entrevista – sobretudo tendo em conta uma recorrente atitude pouco esclarecedora em relação ao seu trabalho – Lucas explica que os autorretratos começaram quase como brincadeira, que foram conquistando terreno ao longo do tempo e acabaram por garantir uma presença perene sua na prática artística:
O que eu sou é muito parecido com o que procuro no meu trabalho. Que é uma espécie de sensualidade com uma espécie de ambiguidade sexual e porque não pareço particularmente feminina. Não sei bem o que é que isso tem de tão interessante, mas acho que é interessante não só no meu trabalho, mas em geral. É como uma zona cinzenta, algo entre os sexos. (Kölle & Lucas, 1996)
O primeiro autorretrato, Eating a banana (Fig. 1), de 1990, representa a artista comendo ostensivamente uma banana e encarando a objetiva com um olhar de soslaio, simultaneamente desafiador e trocista. Realizados ao longo de 35 anos, no seu conjunto sugerem, defende Snow (2023), “uma solidez e continuidade de estilo pessoal que é quase um logótipo: o mesmo corte de cabelo andrógino; a mesma postura de estrela de rock; o mesmo cigarro omnipresente” (para. 6).

Eating a Banana, 1990
Black and white photograph, 105 x 112.8 x 5 cm
© Sarah Lucas. Courtesy Sadie Coles HQ, London. Photo: Gary Hume
Sadie Coles, galerista e amiga de Lucas desde os anos 90, recorda como a conheceu num jantar formal, ao qual compareceu envergando uma velha t-shirt rota:
Uma das primeiras coisas que me atraiu para as suas esculturas foi a irreverência e a energia em torno desse gesto, por isso penso que esse é um elemento muito importante, e continua sendo um elemento muito importante do seu trabalho. Talvez o trabalho se tenha tornado menos agressivo, no entanto, mantém uma espécie de desafio, uma tensão anti-establishment no que ela faz, um desafio à autoridade masculina. (Coles citada em Sooke, 2015, 13:38)
Ao qualificativo tomboy e expressões correlatas, antepõem-se outras leituras. Ninguém terá explicitado melhor o equívoco que pende sobre a receção crítica da obra de Lucas do que Philippa Snow (2023):
Um erro comum cometido quando se discute a sua obra é a contextualização da sua prática – e mesmo da sua imagem – em relação apenas aos homens ou ao masculino, de modo que acaba por ser retratada como uma “tomboy” ou uma “ladette”, fazendo um trabalho que é transgressivo, pelo facto de ser uma mulher a agir como “um dos rapazes”. De facto, ela demonstra explicitamente que não há nada de intrinsecamente machista em gostar de piadas sujas, ou em ficar chateada, ou em querer ter sexo casual, ou em aparecer num autorretrato sem maquilhagem e um casaco de cabedal. Lucas sempre pareceu e agiu como uma rapariga; só que demorámos três décadas a chegar à sua conceção do feminino – uma conceção que pode englobar a lingerie lager, bem como o facto de ser um pouco misândrica e louca por pénis. (para. 8)
A questão fálica está presente desde os primórdios. A primeira exposição polémica de Lucas aconteceu em 1992, numa galeria londrina. Intitulada Penis Nailed to a Board, apresentava um conjunto de colagens a partir de páginas de jornais sensacionalistas com imagens de homens envolvidos num escândalo sexual. Constituiu-se como o início da sua relação com a imprensa tabloide enquanto matéria artística e veículo para explorar as problemáticas da representação e objetificação da mulher no contexto da chamada cultura de massas.
Precisamente, pénis de todos os feitios, dimensões e materiais, vulvas e vulvas, pares de seios e seios múltiplos, pernas, braços e outros fragmentos do corpo; cigarros como matéria do fazer e como adereço de encenação; animais e objetos quotidianos como sejam, vegetais e frutas diversas, a reiterada proteína (ovos estrelados), baldes, cabides, banheiras, bolas de futebol, collants, escovas de limpar canos; materiais pobres encontrados, como mobiliário doméstico degradado, frigoríficos ferrugentos, cadeiras, sempre as cadeiras, mesas, sofás esventrados por lâmpadas incandescentes e outros objetos fálicos, sanitas velhas de cerâmica, sanitas novas de poliestireno. Tudo como metáfora do corpo e das atividades humanas mais básicas: comer, beber, fumar, fornicar. Sem rodeios e sem vestígio de pudicícia, Lucas aponta-nos com estridência o que sempre lá esteve, toda a parafernália quotidiana e a sexualidade nela latente. Desinquieta-nos, provoca-nos, irrita-nos, por vezes, diverte-nos, com frequência. À sua maneira, desafia o patriarcado e as narrativas dominantes de género e poder. E não pede desculpa a ninguém. Essa postura no espaço público conduz-nos a um outro epíteto que recai com frequência sobre Lucas, o de bad girl (Carson & Pajaczkowska, 2000, p. 55, p. 66; Stallabrass, 1999, p. 141; Hubbard, 2023). Embora a artista nunca se tenha pronunciado sobre ele, que se saiba, parece-nos que, ao contrário do supramencionado, de que fazemos leitura pejorativa, estoutro enuncia uma narrativa de empoderamento, necessariamente associada a uma prática artística disruptiva, que desde sempre anunciou ao que vinha. Vinha e vem para arrasar a forma como a sociedade britânica vem perpetuando preconceitos socioculturais, sobretudo, no que diz respeito às mulheres; vem para a abalar o discurso misógino potenciado pela exposição mediática; vem para dizer aos homens que as mulheres estão cá e sabem o que querem.
Na obra de Lucas, que se expressa através de meios como a fotografia, a escultura, o desenho ou a instalação, os corpos humanos são reiteradamente representados por fragmentos, abrindo caminho à ambiguidade e pluralidade interpretativas. Ao reproduzir uma visão estereotipada de masculinidade e do olhar masculino sobre a mulher, tão característica da imprensa tabloide britânica (e não só, malheureusement), Lucas devolve-nos com os seus trabalhos uma tentativa de resposta que abre fissuras, que fragiliza essa visão. Fá-lo, amiúde, adotando poses e artifícios de linguagem – tudo é linguagem, repete constantemente (Ruf & Lucas, 2005; Tate, 2023, p. 14) – socialmente associados a algum tipo de masculinidade tóxica, sempre com conotações sexuais.
Sendo certo que, na opinião de vários críticos e igualmente na nossa, o posicionamento artístico de Sarah Lucas é desafiador, com frequência desconfortável para o observador, ele insere-se indiscutivelmente numa genealogia de arte feminista, como se argumenta no preâmbulo de Sarah Lucas: exhibitions and catalogue raisonné 1989-2005, a propósito dos seus autorretratos: “a sua autorrepresentação segura de si e confiante transmite uma atitude crítica e reflexiva guiada por linhas feministas” (Dziewior et al., 2005, p. 7). Claro, que há vozes discordantes, nem tanto do seu posicionamento feminista, mais ou menos deliberado, mas antes que a acusam de uma certa acriticidade. Lucas cria intencionalmente uma confusão de identidades nos seus, por vezes, controversos trabalhos. Numa entrevista, falou sobre essa manifesta ambiguidade identitária: “Gosto de brincar com os estereótipos de género. E gosto de androginia. Todos estes significados são construções e, na verdade, são bastante frágeis. Poderiam ser de outra forma” (Ruf & Lucas, 2005, p. 30).
Se é verdade que Lucas tende a colocar o espetador nessa posição indesejada, é igualmente verdade que a artista recorre ao humor como veículo de aproximação àquilo que preferia não ver. Da sua práxis é inseparável essa ideia tão tipicamente britânica – mas não exclusivamente – de pun, de trocadilho, de jogo de palavras, quer no sentido visual, quer linguístico, inerente às noções de humor e ironia. Se a obra de Sarah Lucas tantas vezes se imiscui nos territórios do prazer sexual (ou da ausência dele), identifica-se iteradamente na sua prática, um outro prazer, o prazer humorístico, aquele que Freud (1927), que tanto escreveu sobre o primeiro, alega possuir um carácter particularmente libertador (p. 244). Ignora-se se Lucas estará familiarizada com este diagnóstico do psicanalista austríaco – embora, no final dos anos 1990, tenha feito uma exposição no Freud Museum London[4] – mas, sem dúvida que, nas últimas décadas, tem posto em prática estes preceitos freudianos.
A análise de alguns trabalhos icónicos da artista inglesa dá-nos conta disso mesmo. Interessa-nos, sobretudo, entender de que forma todas estas camadas se fundem, quer do ponto de vista de uma poiética muito particular, quer do ponto de vista da sua receção crítica, moldando esse palimpsesto chamado Sarah Lucas.
he said we can be friends equally
tho’ we are not artists equally
I said we cannot be friends equally
and we cannot be artists equally
he told me he had lived with a ‘sculptress’
I asked does that make me a ‘film—makeress’?
Oh no he said we think of you as a dancer.
– Carolee Schneemann
(excerto de poema da artista visual experimental)
Contributos para um enquadramento teórico
Censurado por indecência, o desenho em que Margaret Harrison representa o rei da soft-porn e da objetificação do corpo feminino, Hugh Hefner, enquanto Bunny com um Bunny Pennis, levou ao encerramento da primeira exposição individual feminista, de uma artista mulher, em território britânico (Chadwick, 1997, p. 355). Corria o ano de 1971, o mesmo em que a tempestade Nochlin haveria de lançar as bases para a teoria da arte feminista, com a publicação do ensaio Porque não houve grandes mulheres artistas?[5](Nochlin et al, 2021/2023). Significativamente, na introdução à edição do 50º aniversário, reitera-se a atualidade do texto, “não somente pela sua crítica virulenta à ‘grandeza’ enquanto qualidade inata, mas igualmente por explorar o modo como artistas mulheres alcançaram sucesso apesar da exclusão das instituições e desigualdades sociais” (Grant, 2021/2023, p. 11). Em epígrafe, a artista Judy Chicago (2021/2023) – figura incontornável do movimento nos Estados Unidos – realça a forma como o ensaio de Nochlin espoletou uma série de acontecimentos que deram início a “uma revolução no cânone, que ainda está em curso” (p. 7). E porque o processo está longe de terminar, Griselda Pollock (1988/2003) alerta para a necessidade de a teoria da arte feminista se afirmar como ferramenta de questionamento radical e permanente, defendendo que a história da arte não deve centrar-se exclusivamente na visibilidade/ invisibilidade das mulheres artistas ao longo do tempo e na sua inclusão no cânone. Antes deverá implicar um esforço alargado “para o reconhecimento do significado das diferenças sexuais e de outras diferenças, no contexto do concurso de muitos fatores sociais, económicos, ideológicos, semióticos e psicológicos que possam ser tidos em conta” (p. xxi). Quase meio século passado sobre o ensaio de Nochlin, Hilary Robinson (2015) define claramente o seu propósito enquanto editora de uma antologia de teoria da arte feminista: “Nesta circunstância, a luta é contra o patriarcado do mundo da arte” (p.7).
Sarah Lucas é, por consequência, herdeira destes e de outros contributos para a arte feminista, o movimento que surgiu nos anos 70 do século XX, integrado na segunda vaga feminista com o propósito de desafiar as estruturas patriarcais dominantes no mundo da arte, ou seja, “as estruturas dentro da cultura visual que usam marcadores de género, raça e nacionalidade acima de tudo, na manutenção de hierarquias de formas de produção e consumo, de categorias de artistas e de representação” (Robinson, 2015, p. 7). Ou como ainda recentemente defendia Katy Hessel (2024):
Não é que acredite que haja algo inerentemente ‘diferente’ na obra de artistas de qualquer género; é mais que a sociedade e as pessoas e instituições que controlam o acesso sempre derem prioridade a um grupo ao longo da História. E acredito que é fundamental que isto seja abordado e desafiado. (p. 11)
Argumentamos, como Leavy e Harris (2019), que o feminismo é um posicionamento “comprometido com os direitos humanos que procura expor e remediar as desigualdades de género” (p. V) e tal como Chimamanda Ngozi Adichie (2012/2023) afirmamos que “feminista é o homem ou a mulher que diz: ‘Sim, existe um problema de género ainda hoje e temos de o resolver, temos de melhorar’” (p.48). Uma premissa de comprovada pertinência num contexto sociopolítico alargado e, consequentemente, no mundo da arte.
Em 2012, inspirada nas ações realizadas pelas Guerrila Girls [6], a associação feminista britânica East London Fawcett (ELF) conduziu um estudo denominado Great East London art audit (The East London Fawcett Group, n.d.) com o propósito de avaliar iniquidades de género no domínio das artes visuais, na capital inglesa. A ELF constatou que em 134 galerias comerciais londrinas, representando mais de três mil artistas, apenas 31% eram mulheres e 78% das galerias representavam mais homens do que mulheres. Um outro indicador, a análise dos 100 mais elevados montantes obtidos em leilões de arte, nesse ano, revelou uma verdade crua: a ausência de qualquer mulher na lista. Nem mesmo Sarah Lucas ou Tracey Emin, artistas que por essa altura tinham já alcançado certa visibilidade dentro e fora de portas, na esfera da arte contemporânea.
Embora tenham trilhado caminhos diferentes – chegaram a partilhar uma loja de venda de objetos artísticos e merchandising[7] –, ambas começaram a conquistar espaço mediático no início da década de 1990, integrando um grupo de artistas que veio a ficar conhecido com Young British Artists (YBA). Muitos eles – Emin é uma exceção – eram estudantes da Goldsmith College. Um dos elementos deste jovem grupo de jovens em busca de uma fatia do competitivo mercado da arte britânico dos anos 1980/90, Damien Hirst, foi o principal impulsionador da exposição Freeze (1988), que decorreu num, não convencional, edifício devoluto pertencente à autoridade portuária, junto ao rio Tamisa. E a Freeze causou fuss. A antiga diretora da Serpentine Gallery, Julia Peyton-Jones, explica o impacto que a exposiçãoteve na sua vida: “Foi uma revolução…ensinou-me, de facto, algo sobre visão. Ambição. Desejo. E também atitude” (Peyton-Jones citada em Fullerton, 2016). Durante meses a imprensa britânica fez eco da mostra em que participaram dezasseis artistas. Seis eram mulheres, entre elas, uma discreta Sarah Lucas. Realizado entre 1995 e 1996, o ciclo expositivo Brilliant! New Art from London, mostraria aos norte-americanos obras de um grupo de YBA. Flood, o seu promotor não hesita em afirmar que a origem dos YBA, “remonta à Freeze, a exposição organizada por Damien Hirst” (2016).
A expressão Young British Artists havia sido lançada em nota de rodapé de um artigo da ArtforumintituladoYoung? Invisible? w/Attitude?, assinado por Michael Corris (1992), no qual o crítico afirmava: “A “nova geração” de “young British artists” é um fenómeno cultural nascido de necessidades específicas, expressas, principalmente, em termos de uma presumível cultura nacional” (p.108). A expressão ganhou fôlego e nunca mais o perdeu. Acabou por fixar-se no mundo da arte e, por extensão, no espaço mediático britânico dominado pelo liberalismo económico imposto pelos sucessivos governos Tatcher. Mas não sem oposição.
Julian Stallabrass (1999), ensaísta e crítico de arte de matriz marxista é, talvez, um dos mais destacados críticos do fenómeno YBA e Sarah Lucas é um dos seus alvos favoritos. Argumenta que os YBA não são um coletivo artístico, não têm um programa comum, nem sequer são todos novos ou sequer britânicos. Mantêm, isso sim, uma relação privilegiada com os meios de comunicação social e usam com frequência material que deles provêm. Além de que, apresentam trabalhos visualmente acessíveis ao público, primando pela espetacularidade (pp. 2-4), no sentido debordiano, acrescentamos nós. Stallabrass, com a ironia que o caracteriza, chegou ao ponto de inventar uma expressão sinónima de Young British Artistas: High Art Lite, suscetível de ser traduzida como alta arte leve ou arte erudita leve, “uma arte que parece, mas não é bem arte, que atua como um substituto da arte” (p. 3).
Se o humor não é alheio à prática ensaística de Stallabrass, como o próprio admite, a ironia e o humor, são igualmente traços característicos da obra de Sarah Lucas. E, como sabiamente afirmou o erudito e ocultista francês Pierre Piobb: “Não há nada (…) que o humor inteligente não possa resolver em gargalhadas” (Piob citado em Breton, 1939/1966, pp. 13-14). Passageiro frequente das práticas artísticas de vários YBAs, e especificamente da artista em análise, o humor é esse artifício humano que, em termos psicanalíticos, Freud (1927) considera ser enaltecedor e libertador, predicados que não encontra noutras formas de prazer intelectual: “O humor não é resignado – é rebelde. Não significa somente o triunfo do ego, mas igualmente o princípio do prazer que aqui consegue pronunciar-se contra todas as condições desfavoráveis da realidade” (p. 244). Breton (1939/1973), na sua antologia do humor negro – ou é negro ou não é humor, diz ele – discorre sobre o humor e os seus limites, desde logo, a estupidez, defendendo, em passagem particularmente eloquente, que o humor é, por excelência:
o inimigo mortal da sentimentalidade com cara de desespero (…), de uma certa fantasia a curto prazo que passa bastas vezes por poesia, que em vão procura submeter o espírito aos seus caducos artifícios e que não poderá já erguer ao alto, por muito mais tempo, entre os grãos de papoila, o seu pescoço de pega coroada. (p. xiii)
A par do humor, essa força crítica antagónica à sentimentalidade desmesurada, caminha a ironia ou vice-versa. Nascida em berço helénico como dispositivo retórico, a ironia é semanticamente algo que ocorre na discrepância entre o que se quer dizer e o que se diz e o que se diz, normalmente, significa o oposto do que se pretendia dizer, tipicamente para efeito humorístico ou enfático (Oxford University Press, 2024). Há mais de dois mil anos, já Aristóteles (2018) alertava para o facto de a ironia “ser mais adequada ao homem livre do que o escárnio. O que emprega ironia fá-lo para rir dele próprio, o trocista, para escárnio dos outros” (p. 264). As dificuldades inerentes às definições de humor, ironia e afins, aliás, persistentes ao tempo (Breton,1939/1973, p. XVIII), são assim equacionadas por O’ Neill (1983):
Geneticamente, a ironia é a arma do underdog astuto, o eiron da comédia grega, que contrapõe os exageros do alazão, através da estratégia inversa do eufemismo astuto. A ironia tende, assim, a ser um instrumento bem afiado, um florete em vez de um cassetete. O grotesco, por outro lado, atua precisamente através do exagero em vez do eufemismo, pela surpresa em vez da insinuação. A ironia é intelectual e racional; o grotesco é emocional e irracional. (p. 93)
Desconhece-se se Sarah Lucas leu os clássicos, mas é certo que na sua práxis, consciente ou inconscientemente, coexistem alguns destes aspetos. O corpo e seus fragmentos são elementos centrais do trabalho da artista e, nesse sentido, ele inscreve-se numa longa genealogia de mulheres artistas que se fortaleceu, desde logo, com as primeiras vanguardas, sobretudo no âmbito do movimento surrealista, como argumenta Whitney Chadwick (1998):
Ao mobilizar o corpo como um significante primário da sua política cultural, o Surrealismo estabeleceu novos parâmetros dentro dos quais as mulheres artistas poderiam começar a explorar a relação complexa e ambígua entre o corpo feminino e a identidade feminina. (p. 4)
O corpo fragmentado, desmultiplicado, em mutação e redefinição, o corpo como importante medida da subjetividade feminina, afirma-se primeiro no contexto do trabalho artístico das surrealistas. Já a partir dos anos 1970, e com a emergência do movimento feminista, as mulheres mobilizaram os seus corpos “como marcadores de novas políticas sexuais e culturais, continuaram a utilizar o corpo para desafiar as construções sociais do género e da sexualidade” (p. 15). Várias artistas contemporâneas, advoga Chadwick, empregam estratégias de disrupção e/ou imagens do corpo fragmentado, deformado ou duplicado, como são os casos de Ana Mendieta, Francesca Woodman ou Cindy Sherman (p.5). Nesse contexto, e num certo sentido herdeira do surrealismo[8], invoca-se Louise Bourgeois, a quem Sarah Lucas deve certamente alguma inspiração. Vejam-se as esculturas polimórficas de Bourgeois, as fronteiras esbatidas entre o masculino e o feminino de que são exemplo Sleep II ou Torso (Self-portrait), ambas descritas como autorretratos.
Voltamos à questão inicial da objetificação do corpo feminino, pois a par da invisibilidade do trabalho de mulheres artistas, esta tem sido, defendem Carson e Pajaczkowska (2000, p. 26), uma preocupação central da teoria e das práticas feministas nos últimos cinquenta anos. E em estreita articulação com a objetificação surge, inevitavelmente, a questão do nu feminino. Como sustenta Lynda Nead (1992/2013), essa linha de questionamento não pode ser ignorada, na medida em no ocidente a imagem do corpo feminino nu se constituiu como um sinónimo de arte (p. 11). O nu feminino tem sido “entendido como um meio de conter a feminilidade e a sexualidade feminina” (p. 13), não só propondo definições individuais para o corpo feminino como determinando regras específicas para o seu visionamento.
Se iniciámos esta secção mencionado a censura de que foi alvo o trabalho de Margaret Harrison, terminamo-la com um outro caso paradigmático: a pintura da artista sueca Monica Sjöö, God giving birth. Esclareceu a própria artista que a pintura se inspira no nascimento do seu segundo filho e na sua crença espiritual na Grande Mãe (Moderna Museet, 2025). Como assinalam Parker & Pollock (1981/2013), o trabalho foi considerado “pornográfico e obsceno por mostrar um nascimento e quase blasfemo por associar a divindade ao corpo feminino procriador” (p. xxi), tem sido alvo de perseguição e insultos em inúmeras ocasiões durante os anos 1970/80. Sjöö esteve na iminência de enfrentar os tribunais por causa dela. Em 1994, God giving birth foi adquirida por um museu sueco especializado em arte feita por mulheres. Em 2005, Sjöö morreu sabendo que o seu trabalho havia sido reconhecido: a pintura em causa é hoje um ícone do feminismo (Moderna Museet, 2025). Caminhamos, de facto, aos ombros de gigantes. Lucas também o saberá.
Não há nada que substitua os órgãos genitais em termos
de significado e de um pouco de vantagem.
Curiosamente, as vaginas parecem chocar mais as pessoas do que um pénis.
Especialmente os moldes de gesso das verdadeiras.
Sarah Lucas (Tate, 2023, p. 53)
Exemplos selecionados de uma prática artística
Stars here we came, de 1998, é uma instalação composta por duas latas de cerveja, vazias e amassadas, dispostas de forma fálica numa pequena prateleira, posicionada ao nível do olhar do espetador médio. Acima delas um recorte de jornal exibindo uma fotografia da bomba atómica, para o qual a extremidade superior da lata. Além do duplo jogo, de palavras e imagético, de explícita conotação sexual e política, este trabalho pode também ser interpretado como um ataque deliberado à hegemonia do patriarcado e à forma beligerante como esse domínio se manifesta e reproduz. A guerra e a morte, os seus atores e as suas consequências, são uma preocupação pontualmente presente na obra de Sarah Lucas, mas nenhum outro assunto prevalece como o sexo e, por extensão, a identidade sexual. É dela que emanam os questionamentos de classe, de género, de misoginia, de igualdade e desigualdade, do desempenho de papéis num enquadramento sociopolítico.
Se referenciamos a exposição Penis… como desencandeadora de uma certa poiética, detenhamo-nos ainda um pouco numa outra exposição da mesma época, Sod your gits. Comecemos pelo título. Trata-se de uma expressão grosseira, Vão-se lixar, seus idiotas (em versão comedida) mas que traduz, simultaneamente, a enunciação de uma forma de fazer, também materializada na reprodução em grande escala das páginas centrais do jornal britânico Sunday Sport. Abaixo do título, ladeado por anúncios de serviços sexuais, uma mulher sorridente de pequena estatura, munida de um chicote, exclama: “os homens ficam doidos com o meu corpo”. Refere, a propósito, Snow (2023): “A obra explode como um tiro de uma pistola de partida (humoristicamente fálica), anunciando a chegada de uma documentarista da vida sexual feminina diferente de qualquer outra na história da arte” (para. 2). Estas etapas iniciais do percurso de Lucas estão associadas ao despertar do interesse da artista por temas relacionados com os movimentos de mulheres, aos quais chega através da leitura de textos como Intercourse ou Pornography, da feminista radical Andrea Dworkin (Tate, 2023, p. 18). A própria esclarece: “Li muitos livros feministas que exploram a pornografia… e questionei a minha utilização da mesma como material. Mas não estou a tentar resolver o problema. Estou a explorar o dilema moral, incorporando-o” (Lucas citada em Stallabrass, p. 94).
Malgrado a declaração algo displicente, parece-nos que Lucas assume conscientemente um posicionamento feminista em grande parte dos seus trabalhos, mas não sem provocar agitação. À sua obra está indelevelmente colada a uma fina camada de ambiguidade e a aridez dos seus parcos comentários acerca dela alimenta uma polissemia interpretativa, que defendem algumas vozes, não passa de uma ficção criada pela crítica de arte. Desde logo, Stallabrass (1999), acérrimo detrator não só de Lucas como de toda a geração YBA, argumenta que o trabalho da artista londrina é acrítico, carece de preocupações teóricas e que são as análises teóricas que sobre ele incidem que tendem a fazer leituras conceptuais, apresentando-o como conscientemente feminista e pós-moderno (pp. 95-96). O seu diagnóstico tem baseia-se, entre outros, em afirmações da própria artista sobre o seu trabalho, como sejam, “não vou dizer nada…pense o que quiser” (Lucas citada em Stallabrass, 1999, p. 95), a roçar a indiferença, ou, poderíamos acrescentar, em puerilidades mais recentes como na conversa com a curadora da exposição, Happy Gas, Dominique Heyse-Moore:
É um paradoxo que a felicidade nos lembre a tristeza e que uma história triste possa ser estimulante, ou que algo mágico possa surgir de algo mundano. Suponho que, quando estou a fazer coisas, estou à procura de uma espécie de transcendência das coisas quotidianas para algo mais surpreendente. (Lucas & Heyse-Moore, 2023)
Stallabrass (1999) concede que a Sarah Lucas pública é uma construção, uma persona, mas entende que a leitura pós-moderna que recai sobre sua obra, lhe confere um caráter de neutralidade que isenta a crítica de um julgamento moral, portanto, abrindo espaço para que qualquer leitura seja considerada legítima.
O que é que falta neste tipo de trabalho? É conceptual, mas não crítico; agarra-se às preocupações da teoria, mas não lhes dá espaço. Em vez disso, uma ironia omnipresente e paralisante acalma o trabalho da forma que é suposto na sabedoria convencional, para desafiar o espetador, mas que, de facto, apenas abre convenientemente o material demótico a um deleite estético seguro. (p. 96)
À visão de Stallabrass concede-se que o humor e a ironia são característicos da práxis de Lucas. São aliás, um instrumento que utiliza, defende Coles (2005), de algum modo dando razão a Stallabrass, para aproximar o espetador de tudo aquilo que gostaria de evitar (p. 63). Quanto ao resto, não falta quem discorde do crítico britânico. Gregor Muir, também autor de publicações sobre os YBA, dirigia o Institute of Contemporary Arts, à data da participação de Lucas na Bienal de Veneza, expressa uma opinião diametralmente oposta:
Sempre considerei a Sarah uma das mais intelectuais [no contexto YBA]. No fundo, ela pensa muito e muito bem sobre o seu trabalho, não o encara em termos de “vou abrir um armazém, arranjar muitos assistentes, produzir coisas e vendê-las por muito dinheiro em feiras de arte”. É uma artista que deita as mãos à obra. (Muir citado em Sooke, 2015, 17:33)
Carson e Pajaczkowska (2000) consideram, a priori, o trabalho de Lucas como “chocantemente destituído de teoria, bem como descaradamente mainstream e populista” (p. 64). No entanto, acabam reconhecendo que ele convoca questões de representação do corpo feminino que se movem nos territórios da teoria feminista, embora disso não faça alarde. Analisando obras de Lucas e de Emin, na exposição Sensation[9], as autoras destacam o facto de ambas recorrerem a “táticas de choque pós-modernas – aliando um tema provocador e um poderoso sentido de ironia – para explorar questões contemporâneas relativas ao corpo feminino” (p.56). Um exemplo dessa estratégia é a incorporação, nas práticas artísticas, de peças de mobiliário como metáforas do corpo feminino – tema em voga nos anos 90 – e a sua associação a alimentação e domesticidade. Carson e Pajaczkowska invocavam um dos trabalhos incontornáveis de Sarah Lucas, Two fried eggs and a kebab, de 1992.

Two Fried Eggs and a Kebab, 1992
Table, fried eggs, kebab, photograph; overall size: 96.5 x 89.5 x 151 cm; photograph: 24.2 x 16.2 x 0.5 cm; table:76.5 x 89.5 x 151 cm
© Sarah Lucas. Courtesy Sadie Coles HQ, London.
Uma pequena mesa de jantar com sinais de uso, um par de ovos estrelados, um kebab em pão de pita e uma fotografia dos ovos e do kebab, uma encenação mise en abyme que reforça a leitura do que já parecia óbvio. A mesa e os alimentos são uma representação rudimentar do corpo feminino despido, formalmente ausente, mas metonimicamente evidente. Através de um quase interminável jogo de sentidos de conotação sexualizante, Lucas expõe a misoginia que comumente se atribui ao olhar masculino sobre a mulher: a forma vaginal do kebab em pão de pita, os ovos como seios, a mesa como corpo à mercê. A potencial polissemia interpretativa que o trabalho suscita é refutada por Prinzhorn (2005), que considera estes trocadilhos imagéticos uma espécie de armadilha: “a interpretação é vã devido ao excesso de transparência da obra e às suas potenciais ligações” (p. 10). Uma ironia crua, aguçada, atravessa este trabalho com uma violência semelhante às lâmpadas incandescentes que esventram mobiliário doméstico, noutra série de trabalhos da artista.
Ao contrário da metáfora que reclama um complemento de sentido, defende Hutcheon (1995/2005), a ironia, “tem um caráter de avaliação e consegue provocar reações emocionais naqueles que a ‘compreendem’ e naqueles que não a compreendem, bem como nos seus alvos e naquilo a que alguns chamam as suas ‘vítimas’” (p. 2). É o uso deste mecanismo, pensamos, que autoriza essa inversão de papéis perpetrada por Lucas, transformando em ‘vítimas’, ou se preferirmos, alvos, os potenciais ‘agressores’. Este trabalho não está, por certo, isento de um contexto heterorreferencial[10]. Em Robecchi & Bonami (2007), talvez se leve um pouco longe demais o encómio, ao comparar-se Two eggs… à série fotográfica Eating my words (1966-1967), de Bruce Nauman, na qual o artista se representa sentado a uma mesa comendo, de garfo e faca, palavras feitas de pão, na medida em que ambos os trabalhos reificam conceitos estereotipados. Não por acaso, a obra de Nauman é considerada, por Pincus-Witten, (1972) uma clara citação de Marcel Duchamp, nomeadamente da assemblage With My Tongue in My Cheek (1959), na qual se combinam um perfil desenhado do artista com um molde em gesso do seu maxilar. Ora, não se tratando aqui de questionar esta ressonância duchampiana[11], parece-nos um pouco rebuscada a ligação entre a obra de Lucas e a de Nauman e, por esta via, à de Duchamp. Não ignorando, é certo, que o readymade de herança duchampiana é uma presença constante na prática de Lucas – desde logo, em Two eggs – e que a referenciação de trabalhos de outros artistas não lhe é, de todo, alheia. Curiosamente, no contexto de um filme de Duchamp realizado em parceria com Man Ray, Mussman (1966), observa acerca de trocadilhos – estratégia recorrente na obra do francês e, igualmente, na de Lucas –, “ao contrário das frases mais comuns, não tentam fazer uma afirmação definitiva, mas antes lançam uma dúvida irónica sobre a capacidade de qualquer frase escrita ter um sentido último e absolutamente conclusivo” (p. 151).
Bem mais evidente enquanto citação, é a mencionada fotografia exposta como moldura doméstica num dos topos da mesa, da qual ressoa a obra de René Magritte, Le viol (1945): a identidade da mulher é aí erodida pela substituição dos traços faciais pelos do corpo sexualizado. Recorde-se, a propósito, como Chadwick (1998) releva a influência das estratégias surrealistas nas práticas artísticas contemporâneas femininas, nomeadamente, no que concerne a estratégias de disrupção e de fragmentação do corpo (p. 5).
De resto, arte feminista, comida e sexualidade e, genericamente, a ideia de corpo como alimento, há muito caminham lado a lado. Lucas certamente não o ignora. É óbvia a reapropriação que faz dos ovos estrelados como seios, um elemento central na mais célebre cozinha feminista, a da Womanhouse (1972)[12]. O teto da cozinha concebida por Judy Chicago e Miriam Schapiro estava recoberto de ovos estrelados, que também surgiam noutros contextos da casa. A metáfora da mulher como alimento, está igualmente presente numa outra obra referencial de Judy Chicago, The dinner party (1974-79), na qual pratos em forma de vagina – tal como o kebab de Lucas – se configuravam como uma homenagem a um milhar de mulheres que a narrativa histórica dominante havia consumido. Já em Lucas, a ênfase está na forma como o corpo descartável é consumido. A instalação The dinner party foi objeto de enorme controvérsia e acabou condenada no Congresso dos Estados unidos por “pornografia em pratos” (Carson & Pajaczkowska, 2000, p. 29), sendo hoje sinónimo das lutas feministas. Hubbard (2023) realça justamente o facto de em Two eggs…Lucas ter realizado“um trabalho que criticava a mercantilização sexual das mulheres na sociedade do final do século XX”, ainda que disso não estivesse, à data, plenamente consciente (para. 7).
Não deixaremos ainda de assinalar uma curiosa, mas pertinente, leitura desta obra, alicerçada no facto de os ovos estrelados e o kebab serem substituídos diariamente, deixando na mesa uma mancha de gordura que permanece aí inscrita para lá do fim da exposição. O artifício humorístico não se perde na interpretação de Tim Gregory (n.d.), mas mais se afirma a centralidade desse gesto diário de substituição, interpretado à luz do conceito de performatividade de Judith Butler, crucial nas discussões de género, sexualidade e identidade. Interessa-nos, neste contexto, o papel da repetição no processo de significação:
O sujeito não é determinado pelas regas mediante as quais se gera, pois a significação não é um acto fundador, mas um processo regulado de reiteração que se dissimula e impõe as suas regras justamente pela produção de efeitos substancializadores. De certo modo, toda a significação ocorre na órbita da obrigação de repetir; a ‘agência’ localiza-se, pois, na possibilidade de variar essa reiteração. (Butler, 1990/2017, p. 286)
No caso de Two eggs…, Gregory (n.d.) defende que a significação acontece precisamente na iteração, pois é ela que torna o gesto significante. A obra atesta como a repetição viabiliza o enraizamento de convenções sociais e políticas externas ao eu, até ao ponto de acreditarmos que somos nós mesmos que as construímos, que elas são a nossa identidade.
Lucas mostra-nos que podemos remover as influências externas, podemos remover os ovos e os kebabs, mas a nódoa permanece. A nódoa das piadas aparentemente inócuas, a nódoa das aulas de história eurocêntricas ou a nódoa de assistir a séries de televisão em excesso, todas elas ficam gravadas em nós. Se tentarmos remover estas repetições externas, pode parecer que estamos a arrancar um pedaço de nós próprios. (5:08)
Os dois ovos estrelados reaparecerem em vários trabalhos de Lucas, mas já sem esta carga de significação adicional aqui equacionada por Gregory. Por exemplo, numa peça de 2000, intitulada Woman in a tub (Fig. 3). Nela convergem vários elementos presentes em outros trabalhos da artista: uma banheira, dois ovos estrelados e um par de meias de nylon pendurados num cabide suspenso. O corpo feminino está daí ausente, apenas metonimicamente representado. Faltariam a esta obra os cigarros, para lhe conferir um carácter de “panorama do índice” segundo a formulação de Rosalind E. Krauss[13] (1976, p.198). O corpo feminino ausente, representado pelos seus vestígios, contrasta com a representação literal, kitsch, do corpo feminino, evidenciada no trabalho homónimo de Jeff Koons a que a instalação de Lucas indiscutivelmente alude, i.e., critica. No que a ovos suspensos em cabides concerne, um dispositivo semelhante havia sido usado num trabalho intitulado Sex machine (1996), só que aí no lugar das meias de nylon apresentava-se um arenque fumado.
Trata-se, é claro, de casos flagrantes de recurso ao humor e à ironia, cuja dimensão feminista não pode ser ignorada. Lucas choca o espetador, desinquieta-o e, em simultâneo, oferece-lhe a possibilidade de sorrir. Mas a obra já deixou a sua marca.

Woman In A Tub, 2000
Bath tub, taps, hanger, fried eggs, tights, whirl; 120.0 x 99.0 x 70
© Sarah Lucas. Courtesy Sadie Coles HQ, London. Photo: Jordi Nieva
A mesa faz a sua reaparição com alguma frequência. Na instalação intitulada Bitch (1995), uma t-shirt veste-lhe uma das extremidades, debaixo do tampo dois melões suspensos representando os seios femininos, na extremidade oposta um arenque fumado, outra vez, dentro de um saco de plástico, pregado à mesa, no lugar da genitália feminina. Desde o título à sua materialidade, a obra apresenta-se-nos brutal, obscena, in your face, desprovida de humor. Diz Lucas que se apropria das atitudes sexistas “porque elas estão aí para serem usadas. Num certo sentido, isso dá-me força” (citada em Robecchi, & Bonami, 2007, p. 59). Em 1999, voltará a usar a mesma receita, despida de humor, para representar corpos femininos na série Nude: #1 mesa, uma camisola de alças e dois melões numa extremidade, na outra, cuecas e uma escova de limpeza de cor branca; #2 mesa, uma camisola de alças e dois cocos, umas cuecas e uma escova de limpeza de cor negra. Não só nos parece que a literalidade destas obras pouco alcança para além do que se vê, como elas se tornam problemáticas em função da leitura racializada que se abre à interpretação. Entendemos que algumas reaparições recorrentes na obra de Lucas, sem nada acrescentarem ao original, lhe conferem, por vezes, esse carácter homorreferencial[14] que, precisamente, lhes restringe o alcance semântico e axiológico. Dziewior (2005), ao contrário, defende que estas recombinações, esta autorreferencialidade inerente ao trabalho da artista britânica, lhe permite fortalecer um universo próprio autoconfiante e, ao mesmo tempo, “modificar o método artístico proeminentemente estabelecido por Marcel Duchamp – a deslocação e a descontextualização de objetos existentes – utilizando as suas obras de arte da mesma forma que ele utilizava o readymade” (p. 109). Prinzhorn (2005), por seu lado, entende esta estratégia de repetição como uma tentativa de “ver por debaixo da superfície das coisas e criar transparência” (p. 9).
Não é certo que tenha alcançado esse estado de transparência, mas com certeza provocou gargalhadas e doses críticas de desconforto – mais nos homens do que nas mulheres, a acreditarmos em Barber (2020, para. 8), o que não é ausente de significação –, a série de esculturas moles que Lucas iniciou na década de 90, chamadas Bunny. Para as criar, estofou collants nude com enchimento de almofadas, construindo estranhas formas corporais híbridas, com traços antropomórficos, pernas e braços, bem como orelhas alongadas (de coelho, aparentemente), a partir de objetos do quotidiano feminino. A primeira Bunny (1997), com o fantasma de Hugh Hefner a pairar, apresentou-se sentada numa cadeira – outra peça de mobiliário doméstico muito do agrado de Lucas – pernas abertas, braços caídos, pose deselegante, em mais um episódio de desafio ao chauvinismo e às convenções de género. Não há nada de glamoroso nestas bunnies, a que se colam os adjetivos frágil e vulnerável, e ainda assim há algo nelas que nos faz sorrir. Em uma das suas declarações desarmantes Sarah Lucas afirma: “É preciso que haja algum tipo de encontro das pessoas com a obra de arte, que as desestabilize um pouco. (…) Mesmo esta coisa das ereções ou dos corpos nus, todos nós temos um, por isso como é que as pessoas pensam que isso é chocante?” (Lucas citada em Sooke, 2015, 19:35).

Installation view, Bunny Gets Snookered, 35 Heddon Street, Sadie
Coles HQ, London, 12 May – 20 June 1997
© Sarah Lucas. Courtesy Sadie Coles HQ, London.
A história das coelhinhas adensou-se com a exposição Bunny gets snookered. Uma instalação composta por oito bunnies e uma mesa de bilhar. As mesmas posições sexualmente explícitas, o mesmo abandono nestes corpos híbridos, deixados à sorte em cima e à volta de uma mesa de jogo, numa encenação que o discurso dominante não deixa de associar ao universo masculino. Os puns são aqui múltiplos, novamente. Começando pelo título. Além de mesa de jogo, a palavra ‘snooker’ enquanto verbo, em inglês informal, significa, à imagem do jogo, pôr algo ou alguém numa situação difícil ou até mesmo impossível. Ora, as bunnies de Lucas get snookered, foram enganadas e estão agora numa posição difícil, presas numa narrativa de onde dificilmente podem escapar. Carson e Pajaczkowska (2000) alertam para o jogo perigoso que Lucas protagoniza ao confrontar as conceções misóginas sobre a mulher, da forma chocante que lhe é característica: “Com as suas coelhinhas sem cabeça e insinuações sexuais brutais, ela suplanta os rapazes, parecendo virtualmente ser um deles” (p. 66).
Em 2020, treze anos após as coelhinhas primevas e alguns episódios entrementes, como sejam a série Nuds, de 2009, Lucas expandiu o seu repertório de meias de nylon precárias, com enchimento de kapok (uma fibra de vegetal), criando novas criaturas sem cabeça, mas desta feita recorrendo, igualmente aos chamados materiais nobres, como o bronze, ou a outros mais resistentes como o aço, o betão ou o ferro fundido. As novas bunnies já não se chamam bunnies e também subiram para plintos de betão, de MDF, de madeira – algo nunca antes visto no percurso de Lucas. Usam vestuário colorido, saltos altos, e são criaturas cada vez mais híbridas, de múltiplos membros, múltiplos seios, algumas exibem enormes falos e quase todas se contorcem em posições impossíveis, bizarras, mas quase sempre com conotação sexual explícita. Mais uma vez os ventos surrealistas sopram por estas paragens, fazendo eco das esculturas biomórficas de Louise Bourgeois ou até de Bellmar. Estas já não são as criaturas encurraladas da primeira série, ganharam nomes próprios, nalguns casos – Celestina, Celia, Doris – e parecem ter mais domínio sobre a sua condição.

HONEY PIE, 2020
Tights, wire, wool, shoes, acrylic paint, vinyl and metal chair
Sculpture: 94 x 70 x 80 cm; plinth: 40.5 x 91.5 x 91.5 cm / 16 x 36 ⅛ x 36 ⅛ in
© Sarah Lucas. Courtesy Sadie Coles HQ, London. Photo: Robert Glowacki
Endureceram, estão mais divertidas e parecem divertir-se. Um olhar sarcástico diria que talvez Lucas se tenha cansado de ser a proletária dos YBA. Afinal como a própria reconhece, “está a ficar velha” (Barber & Lucas, 2020) e talvez esteja agora mais empenhada em fazer fortuna, dando finalmente razão a Stallabrass. Até já tem um atelier digno do nome, algo que até aqui sempre tinha dispensado e, como uma véritable bourgeoise, divide o seu tempo entre Londres e o rural condado de Suffolk.
A exposição onde as novas bunnies fizeram o seu début intitulou-se Honey Pie, designação homónima de uma das obras exibidas (Fig. 5): enquanto o tronco superior da criatura se revolve, desconfortável, numa cadeira de escritório, os membros inferiores exibem, orgulhosamente, as botas pink de plataforma, em couro envernizado. Honey pie é, claro, o título de uma canção dos Beatles, de 1968 e é também uma forma carinhosa de alguém – geralmente homem – dirigir-se ao ser amado, o que aliás acontece na canção. Fora de um círculo íntimo, é, na verdade, uma expressão melosa, ligeiramente paternalista e tão datada como a composição da banda de Liverpool. A expressão honey pie, combinação das palavras mel e tarte, é também, outra vez, uma forma de equacionar o corpo feminino como alimento. Os duplos jogos, de palavras e de imagens, seguem fazendo o seu caminho na obra de Lucas.
Honey pie e suas camaradas voltaram a apresentar-se na exposição antológica da Tate Britain, em 2023. Obras representativas de várias fases da carreira de Lucas ocuparam quatro salas da instituição. Foi uma enorme encenação, em quatro atos, com os temas recorrentes da artista: a identidade, o sexo, as convenções de género, a morte, sempre atravessados pela ironia aguçada, pelo humor desbragado, por vezes a roçar a obscenidade, que caracterizam o seu trabalho. Searle (2023) descreve, desta forma, o acontecimento:
Há sanduíches gigantescas de resina, do tamanho de camas king-size e com recheios duvidosos que lembram spam[15], insinuações da morte de um fumador (um carro carbonizado, coberto de cigarros apagados), moldes de corpos nus de amigos em várias poses abjetas, roupa interior feita de frango cru e fotografias da artista na sanita. (para. 4)
Norman Rosenthal, que nos anos 90 havia sido curador da Sensation[16], nunca escondeu ser fã de Lucas: “a arte é séria, mas também temos de nos rir da arte, é tudo tão ridículo, o sério e o ridículo existem lado a lado e a Sarah exemplifica isso de uma forma realmente admirável” (citado em Sooke, 2015, 14:44).
Não é coincidência que à exposição da Tate se tenha chamado Happy Gas, uma óbvia invocação do óxido nitroso, também chamado “gás do riso” ou “droga do riso”. Habitualmente administrado em contexto clínico como anestesiante leve, pois provoca uma breve sensação de euforia e relaxamento, mas suscetível de causar danos se for usado em excesso. Um pouco talvez como a obra de Lucas. Pode provocar uma sensação de euforia breve, mas a impressão esvai-se rapidamente e o que resta são os efeitos perenes. Tal como os colchões, sofás, e outro mobiliário que, normalmente associamos ao descanso, à tranquilidade, penetrados, esventrados, rasgados por objetos fálicos luminosos que vem pondo em cena nos últimos anos, do corpus da obra de Lucas emana uma sensação persistente de que nada poderá ficar na mesma. E, a longo prazo, não se conseguem ignorar os seus efeitos. Pode gostar-se ou odiar-se, mas é impossível esquecer.
Considerações finais
Em 2002, a working class girl dos YBA, Sarah Lucas, recusou a nomeação para o Turner Prize, uma das mais relevantes distinções no domínio da arte contemporânea britânica. Duas décadas passadas, em 2023 aceitaria, no entanto, o Prémio de Escultura Hostetler/Wrigley, no valor de 400 mil dólares, atribuído pelo New Museum de Nova Iorque, onde havia realizado uma exposição retrospetiva em 2018. O prémio traduz-se na encomenda de uma escultura pública que, no caso, se intitulará, previsivelmente, Venus Victoria (Artforum, 2023), um título que, à partida, parece desafiador tendo em conta a sua autoria, pois se imagina que possa ser pretexto para algo tão dissonante quanto a antiguidade clássica ou hot lines de conteúdo soft porn, ambas as hipóteses ou nenhuma delas.
Observámos como, em anos recentes, a obra de Lucas parece ter-se tornado mais lúdica, mais colorida e, ao subir para plintos – e suas reminiscências modernistas –, talvez tenha perdido um pouco a ligação à terra e criado algum distanciamento entre si e o espetador, comprometendo, por consequência, parte da natureza provocadora, conflitual, que sempre a caracterizou. Até Sadie Coles, galerista de sempre e amiga da artista, identifica no trabalho recente de Lucas menos agressividade. Será que chegada aos sessentas Sarah Lucas está a perder a sua irreverência, terá começado a ceder aos encantos do modo de vida burguês? A jornalista Lynn Barber, que a conhece há décadas, usa o pretérito imperfeito para dizer que Lucas “era a mais rock ‘n’ roll dos YBA, uma escultora provocadora” (Barber & Lucas, 2020), mas, na verdade, ela continua sendo tudo isso e algo mais.
Apesar de algumas reticências que fomos levantando ao longo deste texto, acreditamos ter demonstrado que não só Lucas construiu um percurso singular nos últimos 35 anos, como segue sendo uma voz ativa na produção artística contemporânea de matriz feminista e isso, só por si, assume toda a relevância no contexto hodierno. Aquele que, segundo Nochlin (2006) já revelava, nos primeiros anos do século XXI, preocupantes sinais de um retorno de “formas flagrantes de patriarcado” (pp.120-121), temendo a ensaísta que tal retrocesso se tornasse um veículo para alguns homens “afirmarem o seu sinistro domínio sobre ‘outros’” (p.121). E, note-se, que Nochlin deixava este alerta em 2006, ou seja, muito antes das drásticas mudanças sociais, geopolíticas e ambientais com que o mundo se foi confrontando na última década. Recorde-se, ainda, como, na mesma altura, bell hooks (2000/2018) advertia para o facto de as políticas feministas estarem a perder alguma clareza de definições – meio quarto de século passado talvez a multiplicidade de definições se esteja a tornar um problema – pelo que, considerava necessário partilhar uma mensagem simples e poderosa, a de que “o feminismo é um movimento para acabar com a opressão sexista” (hooks, 2000/2018, Políticas Feministas, para. 12).
Ora, Sarah Lucas passou toda a sua vida artística fazendo isso mesmo. E fá-lo no entrelaçamento de uma contínua postura desafiante, por vezes tocando os limites escorregadios da obscenidade, da misoginia, recorrendo à linguagem rude dos meios de comunicação sensacionalistas, ferramentas com as quais se impõe ao olhar do outro, causando-lhe repulsa, choque e, simultaneamente, atraindo-o com os seus artifícios humorísticos e irónicos. Não há meios termos com Sarah Lucas: nem ela os utiliza, nem deixa espaço ao observador para que neles se esconda. Não há eufemismos, só disfemismos. Como defendia Breton em sua prosa loquaz, o humor enquanto recurso crítico desmascara e invalida sentimentalismos exagerados e emoções superficiais. Pensamos que é nesse território que o trabalho de Lucas se move, expondo ao ridículo e confrontando narrativas dominantes alimentadas por dispositivos que as perpetuam.
Talvez Lucas não seja, em entrevistas, a mais eloquente das artistas ou, simplesmente, prefira resguardar-se nesse enquadramento onde foi sendo colocada. Lucas não é seguramente uma pensadora, ela mesma o afirma. Talvez as obras de Lucas não tenham sempre a profundidade teórica que alguma crítica lhes foi conferindo, embora como vimos, por vezes, tenham. Não colhem, na nossa perspetiva, as acusações de superficialidade ou de leveza, como propõe Stallabrass, nem mesmo de acriticidade. Ainda nesse domínio, refere Prinzehorn (2005): “Ela não quer alcançar a leveza removendo certos aspetos do conteúdo, nem procura um estatuto intelectual ou académico” (p.11). Isso, certamente. E, por falar em leveza, também Lucas se pronunciou um dia sobre ela. A um questionário imaginário, do tipo proustiano, criado para a folha de sala de uma exposição em Frankfurt, Lucas revela que gostaria de ser lembrada: “como alguém que tornou tudo mais leve” (Lucas, 1996). Das palavras escritas pela artista ressoa um episódio de inusitada confessionalidade, apesar do tom algo irónico de outras respostas. A leveza, afinal, fica reservada para o momento derradeiro e não se imiscuirá no modus faciendi enquanto esse momento não chegar.
Não somente pelas raízes proletárias de Sarah Lucas, nunca ignoradas e até enaltecidas na persona artística que foi desenhando ao longo décadas, mas também por isso, terminamos recorrendo a uma expressão popularizada no século XX, cuja a origem é desconhecida, mas que, pela sua natureza, foi sendo associada a slogans feministas. No nosso entender, condensa, de alguma forma a essência de Sarah Lucas:
as boas raparigas vão para o céu, as más vão para todo o lado.
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto 2024.00970.BD.
Carla Santos Carvalho é doutoranda em Artes Plásticas, enquanto bolseira da FCT, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. É investigadora do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade | FBAUP e do Centro de Estudos Arnaldo Araújo – Grupo Arte e Estudos Críticos | ESAP.
orcid https://orcid.org/0000-0003-2595-628X
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[1] Artigo redigido ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990, que não se aplica às citações diretas. Mais se esclarece, que o itálico é usado, nos termos previstos pela norma, APA 7, bem como em palavras de origem estrangeira, sentidos figurados ou jogos dialéticos ou, ocasionalmente, como enfatização de um termo ou expressão. Tendo em mente uma mais fácil legibilidade, assumimos a responsabilidade das traduções de citações, exceto em poesia e, obviamente, nos casos devidamente referenciados.
[2] Desta ideia de uniforme artístico ressoa a figura de Joseph Beuys. O artista alemão, artista ação, que sempre se apresentava usando um chapéufedora e colete de pesca. Como lhe chamou de Duve, “o último dos proletários” (Duve, 1988, pp. 47-52).
[3] Segundo o dicionário Cambridge, tomboy, é um substantivo que designa uma rapariga do sexo feminino que gosta de vestir-se e agir como um rapaz (Cambrigde University Press, n.d.), o que quer que isso signifique.
[4] Em 2000, Lucas realizou uma exposição na casa onde Sigmund Freud viveu durante o seu exílio (e morte) em Londres, para onde se havido mudado na sequência da anexação da Áustria pela Alemanha nazi. A mostra, intitulou-se Beyond the Pleasure Principle. Tal como a obra homónima do psicanalista, a exposição abordava as ligações entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, uma e outra coexistindo em tensão dinâmica e exercendo a sua influência sobre os comportamentos humanos (Freud, 1920, pp. 7-61). [5] Embora a edição portuguesa não mencione em título o 50º aniversário, trata-se aqui, de facto, de uma versão de Why have there been no great women artists: 50th anniversary edition (Nochlin et al., 2021). Recorde-se que o ensaio original de Linda Nochlin havia sido publicado em 1971.
[6] Guerrila Girls (2024), grupo ativista feminista anónimo criado em Nova Iorque, em meados nos anos 80, que se destacou pelas suas ações de consciencialização para a desigualdades de género no meio artístico.
[7] A loja, Shop, situada em East London, existiu entre janeiro e julho de 1993. Funcionava como atelier, espaço de convívio de artistas, colecionadores e curiosos e, sobretudo, como local de venda de objetos de arte e merchandising. Sendo um dos mais icónicos, o cinzeiro com a cara de Damien Hirst no fundo – nesse momento já no pelotão da fama –, um reconhecido amante de cigarros tal como as suas colegas YBA (Hessel, 2024, p. 402; Mead, 2018). Na sua curta vida, o espaço, definido por Stallabrass (1999) como um local de venda de “art-junk” (p. 64), que na melhor das hipóteses traduziríamos como arte descartável, constitui-se, de alguma forma, como uma posição curatorial sobre o mercado da arte.
[8] Bourgeois chegou a negar a sua ligação ao surrealismo, mas autoras como Chadwick (1998) entendem que essa ligação é pertinente, na medida em que a artista plástica franco-americana na sua prática recorre ao sonho, ao inconsciente, às motivações psicológicas (p. 15).
[9] Organizada a partir da coleção de Charles Saatchi, a exposição Sensation (1997), realizada na Royal Academy of Arts, em Londres, foi um momento definidor para o grupo de artistas conhecido por YBA. Foram apresentadas obras de duas dezenas de YBA, bem como de outros artistas da coleção privada. Vários trabalhos causaram polémica, entre eles, os de Lucas pelo seu conteúdo sexual explícito.
[10] No âmbito da receção crítica da obra de arte defendemos, como Gomes (2004) uma valorização da noção de heterorreferencialidade, por oposição à de homorreferencialidade ou autorreferencialidade: “a pretensão de uma obra de arte em se encerrar no interior de uma qualquer auto-suficiência traduz uma restrição do seu alcance axiológico e semântico” (p. 395).
[11] Que, aliás, no nosso entender faz todo o sentido até porque está longe de tratar-se de citação única no corpus de trabalho do artista norte-americano. Veja-se o caso da obra Self portrait as a fountain (1966-1967), da mesma data, uma inquestionável citação da Fonte de Duchamp, na qual Nauman se autorrepresenta de tronco desnudo, expelindo água pela boca.
[12] Womanhouse inaugurou-se, em Los Angeles, em 1972, integrando o primeiro Programa de Arte Feminista, originalmente desenhado por Judy Chicago. Em parceria com Miriam Schapiro e com a colaboração de estudantes universitárias, uma casa em ruínas de Los Angeles foi transformada num espaço de experimentação estética e política que se tornou referência para práticas artísticas feministas vindouras. Durante um mês a instalação/exposição recebeu mais de dez mil visitantes (Judy Chicago, 2025).
[13] A expressão “panorama do índice” é usada por Krauss no âmbito dos seus ensaios dedicados a este conceito semiótico e à forma como ele opera ao substituir a linguagem das convenções estéticas pelo registo de uma presença física (1976, p. 209; 1977, p. 211). O índice é assim entendido como um tipo de signo “que surge como a manifestação física de uma causa, da qual vestígios/traços, impressões e pistas são exemplos” (1977, p. 211). A obra de Marcel Duchamp Tu m’ (1918), é considerada pela crítica norte-americana como “um panorama do índice” (Krauss, 1976, p.198) na medida em que incorpora vestígios de vários readymades do artista francês, nesse contexto representados como traços indiciais.
[14] Ver nota 10.
[15] Na circunstância, spam refere-se a uma conhecida marca, nos territórios anglo-saxónicos, de carne processada enlatada de aparência questionável.
[16] Ver nota 9.
